RESENHA: Vitamin, de Keiko Suenobu

 

As histórias em quadrinhos permitem que os seres humanos contem histórias de todos os tipos. Existem histórias que só podem ser contadas através da nona arte, geralmente porque fazer um filme ou série seria caríssimo. Contudo, algumas histórias são únicas desse meio por outra razão: a pessoalidade. 

Poucas mídias podem ser tão autorais quanto as histórias em quadrinhos e Vitamin, de Keiko Suenobu, é um exemplo perfeito dessa afirmação. A indústria japonesa de mangás é gigantesca, potente e variada, com narrativas para encantar, emocionar e divertir todos os perfis de leitores. Nesse oceano infindável de histórias, há um espaço especial para aquelas que são tão pessoais quanto corajosas. 

AVISO: Antes de começar, devo alertar que essa é uma obra que aborda temas como abuso, suicídio, manipulação psicológica e outros assuntos da mesma categoria, então leve isso em consideração antes de seguir ou não com a leitura dessa resenha. 

A narrativa

Em Vitamin (publicado no Brasil pela Editora JBC), acompanhamos a adolescente Sawako, uma garota que vive cedendo às pressões sociais para se enturmar na escola. Acontece que, após ser pega fazendo sexo na escola com seu namorado, Sawako se torna vítima de bullying e vê sua vida se transformar em um verdadeiro inferno.

A questão do bullying é muito séria, especialmente no Japão. As representações que vemos em obras como Vitamin deixa isso bem claro e é possível encontrar milhares de relatos reais ainda piores na internet. Muitos alunos de escolas japonesas passam por um sofrimento profundo, angustiante e solitário que é eximiamente representado em Vitamin. 

Sawako passa por todas as etapas de alguém que vê seus até então colegas (até mesmo algumas pessoas consideradas amigas) se tornarem seus malfeitores. A situação evolui para cenas muito pesadas de assédio e até mesmo abuso, provindo de um ódio tão fútil e maligno que é mais assustador que qualquer mangá que o grande mestre Junji Ito já fez. 

O bullying faz com que Sawako deixe de ir à escola e passe a ficar em casa. Seus pais se preocupam, mas tomam posições opostas. Enquanto seu pai assume que o melhor é deixar a filha tomar suas próprias decisões e lidar com o problema de sua maneira, a mãe fica inconformada e não consegue entender como a filha deixou de ser "normal".

Nesse momento que sua protagonista está perdida e desesperada em meio ao sofrimento extremo, a autora nos convida a observar a representação dos adultos. Além dos pais da protagonista, vemos como seu professor lida com a situação: ele justifica as ações dos agressores e busca proteger o status quo e a instituição . É muito difícil ler Vitamin no geral, pois sua abordagem, principalmente no primeiro capítulo, é universal e sufocante por conta de seu realismo cru. 

Redescobertas

Deixando de ir à escola, Sawako redescobre uma antiga paixão: desenhar. mangá Antes de se tornar uma adolescente que tenta agradar a todos para se enturmar, ela tinha o sonho de se tornar mangaká e já tinha até mesmo começado a criar sua própria história. 

Para não pensar sobre seus "colegas" e todas as causas de seu desespero, Sawako volta a desenhar e redescobre uma grande paixão. Fazer mangá faz sentido. A garota passa a ficar mais feliz e se conecta com esse velho sonho que volta para causar impacto. Entretanto, ao mesmo tempo, nossa protagonista entra em conflito com sua mãe, que se esforça para que ela volte à escola o quanto antes. 

Vou parar de falar sobre a trama de Vitamin aqui, porque vale muito a pena ler. A evolução da relação entre mãe e filha, o entendimento e a importância do papel das figuras paternas na vida de jovens que estão passando por momentos de sofrimento é muito bem feita. É dever dos adultos protegerem as crianças e adolescentes. 

Temática

As vitaminas aparecem constantemente em Vitamin (acredita?). O mundo que vivemos pode se mostrar cruel e os seres humanos têm uma triste tendência à desumanidade. Sociedades, seja a brasileira, japonesa ou qualquer outra, esperam muito de você a troco de quase nada. Para fazer parte de um grupo, o indivíduo deve sacrificar muito de si. 

Mas e as vitaminas? Na minha leitura, interpretei as vitaminas como fontes de coragem. Precisamos de coragem para encarar o mundo, para termos a força necessária para lutarmos pelos nossos sonhos e por nós mesmos. No caso de Sawako, sua vitamina foi o mangá. 

Outra interpretação que tive sobre as vitaminas é que, por outro lado, são algo que você deve "engolir". Ou seja, é preciso aceitar como é. Essa interpretação pode se enquadrar em outro aspecto da trama: os muitos anos em que Sawako (e a maioria de nós) engolimos vitaminas para fazer parte daquele grupo de amigos e ser "aceita". Seguindo essa linha de pensamento, é importante que cada um de nós escolha qual vitamina vai tomar ao começar cada dia. 

O sexismo também é abordado em Vitamin. As repercussões para a garota e para o seu namorado tóxico são muito diferentes. Além disso, o garoto também a manipula constantemente e a abandona quando a opinião social começa a atacá-la. Existe um princípio de debate sobre relacionamentos no início e final do mangá, mas ele acaba ficando em segundo plano. 

Arte e Argumento

Vitamin é um dos primeiros trabalhos publicados de Keiko Suenobu. A autora ainda era uma iniciante quando produziu os 3 capítulos deste volume, então é preciso ter isso em mente ao falarmos da arte. Todavia, destaco que a arte não atrapalha a experiência em momento algum, embora não faça muito para realçar o roteiro poderoso. 

Quanto à divisão de capítulos, vale avisar que o primeiro capítulo é o mais longo e mais impactante de todos. Isso é normal em publicações japonesas graças à forma como essas histórias são lançadas em revistas. Os capítulos 2 e 3, por sua vez, desenvolvem muito bem as situações que o primeiro preparou tão bem. 

O final da história é catártico e impactante, embora se apoie em algumas conveniências e acredito que fuja um pouco da realidade a qual o próprio mangá se firmava. Dito isso, fico feliz que a história termine em uma nota tão esperançosa e que passe uma mensagem que muitos podem precisar ouvir sobre esperança e resiliência. 

Esse não é um mangá declaradamente autobiográfico, mas é impossível não fazer relações e ligar pontos... só que não vou entrar muito nesse tópico. A realidade aqui retratada é visceral e dolorosa, mesmo que não tenhamos uma confirmação de que essa história em específico aconteceu mesmo, muitas parecidas acontecem todos os dias. Espero de coração que todas tenham finais felizes.  

Uma espécie de conclusão

Histórias em quadrinhos não tem o poder de mudar o mundo. Vitamin não vai resolver os problemas envolvendo bullying no Japão, mas é um retrato corajoso e poderoso sobre desespero, esperança, coragem, suporte familiar, sonhos e muito mais. Nesses 3 capítulos, com tom de relato e denúncia, aprendemos mais sobre uma das facetas mais sombrias de nossa realidade. 

Em uma de suas primeiras obras, Keiko Suenobu deseja força para todos aqueles que precisam, assim como coragem para encarar as noites que parecem não ter fim. A arte, assim como os sonhos, é uma vitamina poderosa na luta por um amanhã mais gentil no qual escolhemos continuar acreditando. 

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Escrito por Thiago Almeida.

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